O Outro Lado
Retrato do rei São Luís IX por quem o conheceu (1)
Em nome de Deus Todo-Poderoso, eu, João, senhor de Joinville, Senescal de Champagne, faço escrever a vida de nosso São Luís, e aquilo que eu vi e ouvi pelo espaço de seis anos que estive em sua companhia, na viagem de ultramar e depois que voltamos.
E antes de vos contar seus grandes feitos e sua cavalaria, contar-vos-ei o que vi e ouvi de suas santas palavras e bons ensinamentos, para que se achem aqui numa ordem conveniente, a fim de edificar os que ouvirem.
Esse santo homem amou Deus de todo o coração e agiu em conformidade com esse amor.
Pareceu-lhe bem que, assim como Deus morreu pelo amor que tinha por seu povo, assim o rei colocasse seu corpo em aventura de morte, o que bem poderia ter evitado se tivesse querido, como se verá a seguir.
O amor que tinha a seu povo transpareceu no que ele disse a seu filho primogênito, durante uma grande doença que teve em Fontainebleau:
“Bom filho — disse-lhe — peço-te que te faças amar pelo povo de teu reino, pois verdadeiramente eu preferiria que um escocês viesse da Escócia e governasse o povo do reino bem lealmente, a que tu o governasses mal”.
Amou tanto a verdade, que não quis recusar, mesmo aos sarracenos, o que tinha prometido, como o vereis mais adiante.
Foi tão sóbrio no paladar, que jamais em minha vida o ouvi mandar que lhe servissem quaisquer iguarias, como fazem muitos nobres, mas comia pacientemente o que seus cozinheiros lhe traziam.
Foi moderado em suas palavras, pois jamais em minha vida o ouvi falar mal de ninguém, e nunca o ouvi nomear o diabo, cujo nome está tão espalhado pelo reino, o que acredito não agrada nada a Deus.
Ele diluía seu vinho na proporção em que via que o vinho lhe poderia fazer mal. Perguntou-me um dia, na ilha de Chipre, por que eu não colocava água no meu vinho. Eu lhe disse que os médicos não o ordenavam, por eu ter uma cabeça grande e um estômago frio, e que não podia me embriagar.
O rei disse-me que eles me enganavam, porque se eu não diluísse o vinho na minha mocidade, e quisesse fazê-lo na velhice, a gota e os males do estômago tomariam conta de mim, e nunca teria saúde; e que se eu bebesse o vinho totalmente puro na minha velhice, eu me embriagaria todos os dias, e que o embriagar-se era uma coisa muito vil para um valente homem.
Perguntou-me se queria ser honrado neste século e ter o paraíso depois de minha morte. Disse-lhe que sim, e ele continuou: “Guardai-vos então de fazer ou dizer qualquer coisa que, se todo o mundo a souber, não a possais declarar e não possais dizer: ‘Eu fiz isso, eu disse aquilo’”.
Ele chamou-me uma vez e me disse: “Por causa do espírito sutil de que estais dotado, não ouso falar-vos de coisa que se refere a Deus. Por isso chamei os irmãos que estão aqui, pois quero fazer-vos uma pergunta”.
A pergunta foi esta: “Senescal, quem é Deus?” Eu respondi: “É tão boa coisa como melhor não pode ser”. Continuou o rei: “Verdadeiramente está bem respondido, porque essa resposta que destes está escrita neste livro que tenho em mãos. Agora, pergunto-vos o que preferiríeis: ser leproso ou ter cometido um pecado mortal?” E eu, que nunca lhe menti, respondi que preferiria ter cometido trinta pecados que ser leproso.
Quando os irmãos tinham partido, chamou-me a sós, fez-me sentar a seus pés e perguntou-me: “Como pudeste dizer-me aquilo?”
Eu reafirmei o que lhe dissera, e ele continuou: “Falais sem reflexão, como um avoado, pois não há lepra tão vil como a de se estar em pecado mortal.
“A alma que nele está é semelhante ao demônio do inferno. Por isso nenhuma lepra pode ser tão má.
“É verdade que quando o homem morre fica curado da lepra do corpo, mas quando o homem que cometeu o pecado mortal morre, não sabe e não é certo que tenha tido um arrependimento, e que Deus o tenha perdoado. Deve ter muito temor de que essa lepra lhe dure tanto tempo quanto Deus estiver no Paraíso.
“Assim, rogo-vos, tanto quanto eu possa, que tomeis a peito, pelo amor de Deus e de mim, o preferir que todo mal de lepra e toda outra doença chegue ao vosso corpo, antes que o pecado mortal chegue à vossa alma”.
continúa no próximo post
(Fonte: Charles de Ricault d’Héricault, “Histoire Anécdotique de la France” - Bloud et Barral, Paris, Tomo II, pp. 286-289)
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