Coroação de Balduino I
O Outro Lado

Coroação de Balduino I


Ao seu regresso, Balduino quis ser coroado rei e reconciliou-se com Daimbert. A cerimônia teve lugar em Belém, no dia do Natal do Salvador. O novo rei recebeu a unção e a coroa real das mãos do patriarca.

Não se opôs ao Rei Balduino o exemplo de Godofredo, que depois de sua eleição, não quis ser coroado. Uma triste experiência tinha feito nascer graves pensamentos; a realeza dos peregrinos, essa realeza do exílio, não era mais, aos olhos dos cristãos, uma glória, nem uma felicidade deste mundo, mas uma obra piedosa e santa, uma obra de resignação e de devotamente, uma missão cheia de perigos, de miséria e de sacrifícios.

Num reino cercado de inimigos, no meio de um povo lançado como por uma tempestade a um país estrangeiro, um rei não devia usar uma coroa de ouro, como os outros reis da terra, mas uma coroa em tudo semelhante à de Jesus Cristo.

O primeiro cuidado de Balduino depois da coroação foi administrar a justiça aos seus súditos e pôr em vigor as leis de Jerusalém. Tinha sua corte e seu conselho, no meio de todos os grandes, no palácio de Salomão.


Todos os dias, durante quase duas semanas, viram-no sentado no trono, escutando as queixas que lhe eram feitas e pronunciando sobre todas as questões de seus vassalos, a sua sentença. Uma das primeiras causas que ele teve de julgar foi uma questão entre Tancredo e Guilherme, o Carpinteiro, visconde de Melun.

Godofredo, antes de morrer, tinha dado a Guilherme a cidade de Caifás; Tancredo obstinava-se em conservar uma cidade conquistada com suas armas; Balduino, ante o aviso de seus conselheiros, mandou intimar Tancredo a comparecer ao seu tribunal.

Este, que não tinha esquecido as injúrias de Farso e de Malmistra, respondeu que não reconhecia Balduino como rei da cidade santa, nem como juiz da cidade e do reino de Jerusalém.

Uma segunda intimação foi mandada; à qual ele não deu resposta; por fim, numa terceira mensagem, Balduino convidava seu antigo irmão de armas a não declinar sua justiça a fim de que uma realeza cristã não fosse exposta à zombaria dos infiéis.

Essa última intimação parecia mais uma petição. Tancredo deixou-se vencer, mas não quis ir à Jerusalém, cujas portas há pouco lhe haviam sido fechadas; propôs a Balduino uma conferencia às margens do Ledar, entre Jaffa e Arsur.

Por espírito de conciliação o rei de Jerusalém consentiu em se dirigir ao lugar indicado. A princípio os dois soberanos não se entenderam; tiveram uma segunda entrevista em Caifás; homens sábios e piedosos intervieram para restabelecer a paz.

Por fim, a lembrança de Godofredo, cuja última vontade se invocava, esse nome tão caro a Balduino e a Tancredo, chegou a aproximá-los.

Durante essas negociações Tancredo tinha sido chamado a governar o principado de Antioquia, na ausência de Boemundo, e não somente ele renunciou às suas pretensões sobre a cidade de Caifás, que foi entregue a Guilherme, o Carpinteiro, mas entregou a Balduino o principado de Tiberíades, que se tornou herança de Hugo de Saint-Omer.

Todos os cuidados que o rei Balduino tomava para restabelecer a paz e manter a execução das leis no seu reino, não o impediam de fazer frequentes incursões às terras dos muçulmanos.

Numa dessas expedições além do Jordão, surpreendeu diversas tribos árabes. Quando regressava carregado com seus despojos teve ocasião de praticar a mais nobre virtude da cavalaria.

Não longe do rio, gritos aflitos vieram ferir seus ouvidos; ele aproxima-se e vê uma mulher muçulmana, nas dores do parto, cobre-a com seu manto, manda coloca-la sobre tapetes estendidos por terra.

Por sua ordem, frutos e dois odres cheios de água são trazidos perto daquele leito de dor. Mandou buscar a fémea de um camelo para amamentar a criança que acabava de nascer e depois a mãe foi confiada aos cuidados de uma escrava, encarregada de reconduzi-la ao seu esposo.

Este ocupava uma posição elevada entre os muçulmanos; ele derramou lágrimas de alegria, revendo uma esposa cuja morte ou desonra já chorava e jurou jamais esquecer a ação generosa de Balduino.

De volta à capital, Balduino soube que uma frota genovesa tinha chegado ao porto de Jaffa. Foi ter com os peregrinos de Genova, pedindo-lhes que o ajudassem nalguma empresa gloriosa contra os inimigos da fé; prometia dar-lhes um terço dos despojos e ceder-lhes em cada cidade conquistada uma rua que seria chamada a rua dos genoveses.

Foi concluído o tratado e os genoveses dirigiram-se a Jerusalém para celebrar as festas da Páscoa e renovar, no túmulo do Salvador, o juramento que tinham feito de combater os infiéis.

Chegaram no sábado santo. Era o dia em que o fogo sagrado devia descer ao divino Sepulcro. À sua chegada, a cidade de Jerusalém estava em grande consternação, pois o fogo celeste não linha aparecido.

Os fiéis ficaram reunidos todo o dia, na igreja da ressurreição. O clero latino e o clero grego tinham entoado várias vezes o Kyrie eléison; várias vezes o patriarca se tinha posto em oração no Santo Sepulcro, sem que a chama, tão vivamente esperada, descesse a alguma das lâmpadas destinadas a recebê-la.

No dia seguinte, dia de Páscoa, o povo e os peregrinos voltaram à santa basílica, repetiram-se as mesmas cerimônias da véspera e o fogo sagrado não apareceu, nem no Santo Sepulcro, nem no Calvário, nem em algum outro lugar da Igreja.

Então, como por uma inspiração, o clero latino, quase todo o povo, o rei e os senhores, foram processionalmente, descalços ao templo de Salomão.

Durante esse tempo, os gregos e os sírios que tinham ficado na Igreja do Santo Sepulcro, feriam o rosto, rasgavam as vestes, imploravam a divina misericórdia com gritos lancinantes.

Finalmente, Deus teve pena de seu desespero; à volta da procissão, o fogo sagrado havia descido; todos então derramaram lágrimas, cantaram o Kyrie eléison; cada qual acendeu sua vela na chama divina, que corre de fila em fila e se espalha por toda a parte; as trombetas soam, o povo bate palmas, uma melodiosa música se faz ouvir, o clero entoa os salmos, toda a cidade santa exulta de alegria.

(Autor: Joseph-François Michaud, “História das Cruzadas”, vol. II, Editora das Américas, São Paulo, 1956. Tradução brasileira do Pe. Vicente Pedroso, páginas 90 ss).



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