Capítulo geral da Ordem de São João em Rodes: o mando numa ordem religiosa e militar
O Outro Lado

Capítulo geral da Ordem de São João em Rodes: o mando numa ordem religiosa e militar


Capítulo da Ordem de São João de Jerusalém, Rodes 1524. (1839, museu de Versailles)
900 anos da Ordem de Malta (1113-2013)

Neste ano se comemora o IX centenário da aprovação da Ordem de Malta ou Cavaleiros Hospitalários (oficialmente Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta), pelo Papa Pascoal II, a 15 de fevereiro de 1113.

No quadro: Capítulo geral dos Cavaleiros daquela Ordem, convocado em Rodes pelo Grão Mestre Fabrizzio del Caretto, a fim de obter subsídios para resistir ao ataque do sultão otomano Solimão I, em 1514 (Castelo de Versailles, Sala das Cruzadas, pintura de Claude Jacquand, 1839).

A cena representa o Capítulo geral da Ordem dos Hospitalários de São João, em Rhodes, convocada pelo Grão Mestre Fabrizio del Carretto, em 1514.

A Ordem de São João é a própria Ordem de Malta que é uma Ordem religiosa.

A pintura feita no século XIX situa a cena num ambiente medieval, o que se compreende por todas as razões. É que a Ordem de Malta é uma instituição medieval que conservou seus estilos muito depois de terminada a Idade Média.


Para pegar o espírito da Idade Media, as reconstituições do século XIX são estupendas e, até às vezes pegam melhor o espírito da Idade Média do que as próprias coisas medievais.

É um pouquinho o que se dá quando se olha uma sala a partir de um jardim.

O espírito do que deveria ser a Ordem de Malta e que ela teve difuso ao longo de sua historia, está perfeitamente bem apanhado.

O Grão Mestre está cercado de seus conselheiros traçando planos. Ele tem na mão o mapa de uma fortaleza. Ele está deliberando sobre planos de guerra, dentro de seu Capítulo Geral, que é seu grande Estado Maior, seu Concílio.

A sala que parece um porão. As ogivas estão um pouco achatadas, o que se dá nas salas inferiores e de porão.

Entretanto, há uma profundidade que o quadro representa bem. As arcadas são ogivais e, no fundo esfumaçado se distingue uma ogiva com uma janela transformada em nicho, em que se esboça um santo, que é o fundo de todas as deliberações.

Vê-se aí o primado da ideia religiosa expressa em três símbolos colocados em linha reta; a Cruz no alto,— uma Cruz varonil, sem florões nem nada, a Cruz da dor, sem enfeites, sem prataria, que pesa mesmo nos ombros, a Cruz do guerreiro.

Depois a Cruz se repete no peito do Grão Mestre.

E, no fundo, uma imagem.

Elas formam muito discretamente o eixo central do quadro.

Só há, a meu ver, uma coisa fraca: há um enfeitezinho sem significado definido no gorro do Grão Mestre, um puro enfeite que não é símbolo.

O homem não se enfeita com enfeites. Enfeite de varão é símbolo.

Ele tem uma alma com um sentido e uma missão. Então, o meu símbolo é o adorno que realça a minha missão, que dá o significado do que eu sou, que exprime a beleza de minha alma e não do meu corpo. Todo adorno da Idade Média não decadente é símbolo.

Nenhum Capítulo, a não ser em raras ocasiões da Historia, teve essa beleza pictórica. E aí há uma plenitude de sentimentos em cada um que um grande grupo de homens não alcança. Ninguém está com aridez, distraído, todo mundo está num uníssono com o Grão Mestre que é uma beleza de expressão de unidade religiosa.

Bem no centro do quadro está a ideia de uma ordem religiosa colaborando para uma finalidade altamente sapiencial.

O quadro dá uma ideia de sapiencialidade em tudo. O ambiente é sapiencial, recolhido, sábio, feito para que os mais altos princípios sejam conhecidos e tomados na devida consideração.

Ele facilita uma posição ogival da alma, em que todos os aspectos da realidade e da alma confluem para um mesmo ponto central. E por isto, há um ambiente de grande recolhimento e de uníssono total.

O Grão Mestre dá a diretriz que é recebida a seu modo por cada um.

O que está sentado à esquerda de quem olha, com um cavanhaque e analisando uma folha grande, é objetante por natureza, mas não está fazendo fronda.

No centro, o Grão Mestre. A luz bate nele e a partir dele ela se refrata em graus desiguais para o resto.

Tem-se a impressão que da couraça dele, o branco do arminho dele, as barbas dele, a Cruz dele, o rosto dele é uma espécie de espelho que aumenta a luz que bate nele.

Essa luz vagamente insinua algo que desce do Céu. A ideia vaga que fica é de que a luz irradia dele.

Os papéis dele e a mesa também são de uma alvura enorme. Ele, os pensamentos dele, o raio de ação dele são mais claros do que todos os outros. Ele tem como que uma certa irradiação divina, um certo carisma que enche o resto da sala de modos diferentes.

Ele é o homem ideal para representar esse papel. Poucas fisionomias haveria tão adequadas para isso.

Ele é um italiano do tipo do Mediterrâneo no seu esplendor: um homem possante, um corpão, uma carona, o narigão, os olhos, têm uma harmonia delicada. E há nele todo um misto de delicadeza e estabilidade.

O melhor são os olhos: grandes, atentos. Olha para ver como é e não é o negócio.

Ele tem uma espécie de esguelha própria do esperto de grande classe. O esperto de grande classe não tem olho vivo, tem olho morto. Ele de vez em quando olha, percebe, dá uma “pescada” na realidade e volta para os seus interiores.

Pega o negócio e diz: “eu te colhi! agora vou te analisar na minha calma. Quer você se mexa ou não se mexa, quer você dê ou não dê uma cambalhota, o flash que eu queria colher está colhido, vai ser levado para os meus laboratórios interiores para te analisar e te julgar”.

A calma do Grão Mestre, a distância psíquica e o olhar meio obliquo: ele não olha para ninguém, mas ele tem uma difusa desconfiança do chefe que sabe que em qualquer lugar, de repente, vem o adversário. E que em qualquer colaborador, por mais bem amado que seja, de vez em quando o demônio faz um ataque e a muralha cambaleia.

O domínio que ele exerce sobre todo esse pessoal é feito dessa distância psíquica e desses registros de personalidades diferentes. Ele é um tipo humano esplêndido!

Há uma teoria do mando de uma ordem militar e sacral, que é magnífica nesse velho. Esse velho é inteiramente um militar. Pode-se imaginar esse homem combatendo a qualquer hora.

Mas, o olhar é de um homem de pensamento, de ação, de um diplomata. O que descreve melhor um Grão Mestre da Ordem de Malta senão isto?

A couraça, o colar com insígnia, arminho, que é o símbolo do principado, o manto que eu me comprazeria em imaginar de um violeta quase vermelho escuro.

Ele devia usar uma coroa e não a usa. Mas, o gorro do Grão Mestre lembra alguma coisa de coroa.

Fabrizio del Carretto, Grão Mestre de Rhodes,
quadro no castelo de Rodes
Ele é o príncipe soberano, o Grão Mestre da Ordem de Malta e está com a “coiffure” que lhe convém.

A sala se compõe de três tipos de personagens: há guerreiros, armados a la medieval, um pouco esparsos por vários lados.

Homens de governo, clérigos e homens de administração, que compõem o conjunto da Ordem de Malta, e que estão meio misturados. O Grão Mestre está traçando planos e que o que ele diz está sendo recebido com uma colaboração fantástica por todo mundo.

Há guerreiros que estão numa atitude quase de oração.

Os velhinhos estão um pouco babando, mas tem uma sabedoria quintessenciada, foram experimentados em cem coisas e dão um ou outro conselho raro.

Eles nem estão conseguindo acompanhar as coisas, mas têm um lugar de honra. Eles estão percebendo a linha geral, estão profundamente recolhidos e comovidos.

A atitude deles significa: a tradição continua, mais ainda, cresce! Eles estão embevecidos com as decisões do Grão Mestre, que para eles é um menino. Porque esse Grão Mestre tem uns setenta anos, e eles, embora pouco grisalhos, estão com estado de espírito de noventa.

Colaborando com o Grão Mestre está a “eminence grise”: é o esperto com cara de conselheiro florentino que está vendo alguma coisinha subtil e está cochichando: “olha tal coisa…”

E o Grão Mestre olha para a mesma direção que ele, o que dá exatamente a ideia da consonância dos dois.

Ele não fala, está se aprontando para falar, está acabando de olhar e já está cutucando para dizer qualquer coisa para o Grão Mestre.

Notem bonitas relações entre ele e o Grão Mestre. Ele é um personagem de penumbra, não está nem paramentado nem nada disso.

Parece um religioso, porque aqui está uma cruz. Deve ser algum capelão da Ordem.

Mas como ele está junto do Grão Mestre, e a familiaridade com que ele pega no braço do Grão Mestre.

É o conselheiro íntimo, sujeito ao seu senhor, mas tão íntimo que tem com ele uma certa igualdade e, de um certo ponto de vista, uma certa superioridade. Porque ele é um especialista em subtilezas, em velhacarias, assessor de que todo superior precisa.

Há outra cara que está como quem está aprendendo, surpresa, muito adulto, muito embevecida.

Ainda outra cara recolhida e como quem diz: “como isto confere com os princípios gerais que eu sempre contemplei e sempre amei.”

No castelo de Rodes
Um meio decrépito, com seu físico posto numa posição meio aérea que não se sabe bem qual é, teso ainda, e que concorda com tudo, sem saber muito bem do que se trata. Nele há uma semi-lucidez, mas diz: “não, eu topo a parada, porque eu vejo que em dois ou três pontos tudo está bom, e o resto… vou para frente.”

O homem da esquerda é o contrario: tem uma caixeta de segredos na mão, com uma cara misteriosa e um ligeiro sorriso. É como se ele dissesse: essa turma toda não sabe, mas tantas coisas que eu tenho à mão, como justificam isso! Como isto está esplêndido! É uma outra forma de assentimento.

Como é agradável viver quando se entra nessa escola! Não é preciso ligar o rádio [hoje diríamos a internet] quando se está apreciando esse quadro.

No centro há um muito devoto, muito bom, um pouco bobão. Mas na hora de combater ele luta mesmo! Ele aqui está muito embevecido e quando chegar a hora de lutar diz: “Tinha aquele plano. Eu agora vou!” É o poder executivo. Por isso, representado com barba mais preta, mais moço, ele é uma espécie de benjamim muito conservado.

Ele está com a mão na espada. É o estado de espírito dele.

O enfeite dele prende uma capa e é pesadão, como ele é pesadão, ele é feito para esmagar, é tipo calcanhar de Nossa Senhora. Pega a serpente e lhe esmaga os miolos mesmo!

É o que é preciso, em última analise, no meio de mil vueltas y vuelteretas, é preciso pegar a serpente e acabar com ela, isto é que é preciso! Esse poderia dizer: “Zelo zelatus sum pro Domino Deo exercituum”.

Há um que faz um pouco o bando à parte: ele tem um papel, está um pouco isolado do conjunto e ele está como que conferindo o que o Grão Mestre diz.

Ele está formando não um plano de oposição, mas uma fórmula de colaboração que consiste em dar os contrafortes. Então, é o tipo do objetante com fel: todo esse cabelo dele para trás, com essas entradas grandes e o nariz que pende, uma barbinha que escorre: é fel; na ponta dessa barbinha tem um tantinho de fel… Olhos muito precisos, uma dessas caras que dizem: “Eu não sei por que…” É o jeito dele.

Ele tem um papel que, até certo ponto pode apanhar o Grão Mestre em falso. Ele está conferindo tudo. Mas olhem a calma do Grão Mestre. O Grão Mestre nem liga, deixa… Não tem medo, mas nenhum!

E ele também não está com vontade de derrubar o Grão Mestre, o Grão Mestre pega essa cara de oposicionista e enfeuda-o no seu sistema como sendo um corretivo dele próprio. Está muito bonita essa forma feudal de colaboração.

Dá uma rara firmeza de espírito, rara firmeza de espírito. Mas nas vias da santificação a mais perigosa é esta. Eu dou graças a Nossa Senhora por não ter me pedido que andasse nessa via.

Mais esses dois ao lado dele sofrem uma certa influência dele e estão acompanhando muito embevecidos esta história e a atitude dele.


É como quem quer ver como é que o Grão Mestre se sai; eles estão testando o Grão Mestre.

Agora, o que tem nessa figura de bom é que ele está entusiasmado pelo fato de o Grão Mestre estar acertando. Caras muito pensativas, muito bem apanhadas na meditação.

Bem, o resto é galeria, não está entendendo grande coisa, um está segurando a lançona dele e está acabado. Ele está cheirando o ambiente e concorda genericamente com o ambiente.

E mais ou menos as outras caras são assim. Estes são a mesma coisa que esses, mas com certo enlevo.

Numa sala sapiencial um conselho reunido, onde o homem arquitetônico, posto na posição arquitetônica, diz a palavra arquitetônica.

Com a colaboração de tudo o que dizem todos. Todos estão participando de uma mesma sabedoria.

Isto é a sala do Conselho recolhida, sapiencial e medieval de uma Ordem de Cavalaria. Eu acho este quadro soberbo!

(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, 27.09.1967. Sem revisão do autor)






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